sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Anjo Errante

Era uma vez um anjo que queria ir para casa mais cedo naquela incrivel tarde de sexta-feira. Todos os seus amigos haviam cumprido a cota há horas e só ele ainda tinha trabalho a fazer. Trabalhava já há dois anos no departamento de renascimentos, guiando as almas e fazendo a programação de suas próximas vidas, conforme seus talentos e necessidades. E foi assim que, por causa do tal do "happy-hour", eu nasci no dia, lugar e corpo errado.

Este anjo preguiçoso, cujo nome me comprometi a guardar em segredo (fiz um acordo com os superiores, expô-lo poderia gerar grandes manifestações de indignação), deveria me preparar para a reencarnação. Infelizmente, para mim, naquela sexta-feira o anjo dormiu até mais tarde, seu despertador aureolar descarregou devido a uma tempestade que se deu na madrugada, de forma que ele perdeu a hora. Com esse imprevisto o anjo não pôde fazer o horário de almoço às treze horas como de costume e assim seguiu com fome no trabalho a tarde. Porém, trabalhar durante o almoço não foi suficiente para agilizar suas ordenações daquele dia, porque seu primeiro caso havia sido muito complicado. Uma senhora que necessitava reencarnar se negava veemente, afirmando que pertencia ao mundo dos anjos, que na verdade era muito melhor que todos os anjos juntos e ela, somente, deveria servir ao Superior.

Casos como este são realmente difíceis de contornar. Para um dia difícil nada melhor que um problema difícil! Pobre anjo teve usar toda a sua paciência para convencer a mulher a embarcar no carro reencarnador, usou inclusive de um ofício direto do alto departamento que solicitava, quase coercitivamente, que a mulher embarcasse antes do meio-dia. Felizmente o problema foi resolvido, mas com isso a programção diária se viu toda atrapalhada e na falta do almoço lá se foi o anjo sonhar com o happy-hour e deliciosas porções de nuvens negras tostadas.

Eu, na minha grande insignificância, era o último caso do dia, ou melhor, da semana. O anjo com fome e cansado leu meu nome na ficha 57901, mas apanhou a ficha 57091 - foi ai que tudo começou.

Sempre fui uma alma solitária. Em minhas encarnações vaguei pelo mundo, fui andarilho, pastor, pensador... sempre e sempre sozinho. Uma alma assim se solidifica só. Em minha próxima existência deveria eu encarnar como um poeta boêmio. Minha companheira única seria uma garrafa de Rum barato. Conheceria todos os bordéis e tabernas, mas somente me sentiria completo no recanto de um quarto mofado, solitário, escrevendo poemas que ninguém haveria de ler, mas me renderiam alguns poucos trocados que eu trocaria em bebida ao invés de pão.

O anjo cansado e de má vontade me botou num corpo feminino, cheio de não me toques, numa cidade pequena onde eu cresceria rodeada de gente que me queriria bem. Assinou abaixo do protocolo e correu para a sua vidinha de fim de tarde com seu time de futeaureolas. Eu viajei para o mundo pensando que acordaria conforme o programado, afinal após dois mil anos de espera na fila, o corpo errado seria a última das minhas preocupações.

Durante minha vida sempre tive meus rompantes. Dos doze meses do ano sempre precisei me trancafiar no quarto por pelo menos uns três, sozinho no meu recanto. Era assim que eu podia depois da minha "hibernação" retornar ao mundo e ser feliz, conviver normalmente em sociedade. Meus pais diziam que eu era apenas uma rebelde, mal sabiam eles que era algo muito mais profundo.

Por volta dos treze anos as coisas foram ficando mais claras para mim. Até este meio tempo fiz poucos amigos, alguns para todo o sempre, outros apenas para boas risadas. Já minha produção literária, embora crescente, sempre medíocre (alguma coisa seguiu conforme o planejado!). Quando todos a minha volta começaram a se interessar por romances, lá estava eu descobrindo estantes de clássicos empoeirados na biblioteca. Com 15 anos já sabia qual seria o meu futuro: Eu seria uma daquelas velhas de cabelo branco que nunca se casaram, moram numa casa cheia de gatos, que no meu caso seria cheia de livros, claro.

Mas, graças ao anjo minha programação fora mudada e embora eu tentasse e tentasse seguir o plano, isso ficava cada vez mais difícil. Casei. E por muitas e muitas vezes eu pensei que acabaria me separando antes de ter filhos, porque eu levava mais jeito para solteirona. Tive filhos. E por muitas e muitas vezes pensei que acabaria me separando, sendo uma daquelas fortes mulheres que criam os filhos sozinhos, que no fim eles teriam um futuro brilhante longe da mãe e eu seria praticamente como uma solteirona.

Muito embora meus filhos demonstrarem grande capacidade, nenhum deles foi muito longe da mãe. Meu marido não me abandonou. Eu me concentrei exaustivamente na tarefa de esposa e mãe e não me afoguei em nenhuma garrafa de rum, vinho ou vodka. Também não foi o caso de eu me tornar uma grande escritora. Dediquei toda a minha habilidade da escrita para petições perfeitas e recursos plausíveis, que me renderam dinheiro suficiente para não precisar morar atrás de um bordel, num quarto mofado.

E foi assim, que aos 79 anos (apenas 50 anos mais tarde do que o que deveria ser e nunca foi) eu morri. Rodeada por uma família, amigos, um pouco de dinheiro e uma vida feliz. Embora tenha tentado muitas vezes voltar para o plano original (apesar de não saber, conscientemente, que era isso que eu tentava) consegui seguir o curso dessa vida de surpresas, que em todos esses milhões de anos eu nunca havia experimentado. No começo foi difícil, alguma coisa me faltava, mas trabalho, filhos, casa, o layout de um “sonho americano” toma tempo e aos poucos fui me esquecendo do vazio e o enchendo com outras coisas.

Chegando ao céu fui recepcionada pelo anjo programador que me aguardava ansiosamente. Durante todos esses anos ele esteve em observação, aguardando pelo meu relatório para ser demitido. Mas, após tanto tempo o que eu poderia escrever? Mesmo se eu tivesse tido uma vida triste e sofrida, depois de morrer novamente não importaria mais, escrevi o relatório e acabamos num happy hour, no fim da tarde, no bar da nuvem dois.